terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Vai a pé, menino!

Wander Antunes
Caminhar por dois quilômetros não é o fim do mundo, mas a barra fica muito pesada para quem é estudante, mora em Cuiabá, Mato Grosso, e tem que caminhar essa distância todos os dias até sua escola. Continua não sendo o fim do mundo, mas é quase. O sol por aqui é quente, é muito quente, é mais do que quente é... Não tenho palavras! Pais que tenham seu filho estudando a dois quilômetros de sua casa e tiverem um carro certamente não vão achar que levar o pimpolho até a escola seja um luxo, nem vão pensar que estão estragando ou amolecendo o guri. Vão levar porque acham uma covardia deixar o filho caminhar debaixo desse solão ao longo dos penosos dois quilômetros que o separam da escola. Ou vão levar ou então o garoto vai de ônibus. A pé ele não vai! Dois quilômetros debaixo desse nosso sol faz um estrago danado, todo mundo sabe. Os pais desse hipotético garoto que vive mais ou menos a essa distância da escola sabem que se ele fizer esse trecho a pé irá chegar todo banhado de suor, todo esbaforido à escola (nesse caso o desinteresse pelos estudos já nasce em casa, o guri já associa a escola ao desconforto de ter que ir até lá debaixo do sol). Essa caminhada não fará bem nem ao corpo e nem ao espírito de seu filho. Mas nem todos os pais que vivam a mais ou menos dois quilômetros da escola de seu filho têm carro para levar o garoto até lá. Eventualmente nem mesmo podem pagar pelo transporte coletivo. E aí complica, porque como eles moram próximo à escola (só relativamente, em Cuiabá o calor multiplica as distâncias), a Lei do Passe-Livre (lei municipal nº 4.141)  diz que seu filho não pode tomar o ônibus gratuitamente. O benefício é apenas para quem mora a mais de dois quilômetros delas. Imagino que se o aluno morar a dois quilômetros e mais alguns metros já pode, mas se for ou um pouco menos ou a dois quilômetros redondos aí já não pode. Uma lei feita por gente como a gente, que certamente não gostaria de ver seus filhos desidratando enquanto caminham para a escola. Uma lei feita para os filhos dos outros, os filhos dos pobres.
Não surpreende que nossos legisladores e os donos das companhias de ônibus tenham pactuado algo como a Lei do Passe-Livre.  É vergonhoso, mas é típico desses senhores. Surpreende sim o silêncio da comunidade, a aceitação dessa limitação ao direito ao transporte gratuito. Ou será que não é desgastante caminhar por dois quilômetros debaixo do sol de rachar que faz em Cuiabá? O que os professores dizem disso? Em que estado, físico e de ânimo, esses alunos chegam ao colégio, será que é o mesmo dos alunos que têm transporte assegurado? O que um médico diria desse esforço e sob as condições climáticas em que ele acontece? Dois quilômetros, para efeito de visualização, é mais ou menos a distância que há entre o trevo da UFMT e a ponte do Rio Coxipó – caso alguém queira ser mais preciso: Fernando Correa, do trevo da UFMT até aquela rua que leva ao Cophema (a segunda entrada a direita depois da ponte). Uma baita de uma caminhada, convenhamos. Pode ser interessante fazê-la se o dia estiver agradável, digamos que em torno de uns 18 graus ou algo assim, um pouco mais ou um pouco menos, isso fica ao gosto do freguês, mas imagine-se fazendo isso todos os dias, de casa para a escola e da escola para casa, com um sol de quase quarenta graus no cocoruto. É um pouco demais, não é não? Leis assim revelam que tipo de comunidade nós somos, gritam o quanto nossos discursos e práticas estão no mais profundo desacordo. Ou alguém diria que estamos estimulando um garoto ou garota a ir para a escola, com tanto sol e tanto caminho separando um do outro?